Nem sempre provimento do recurso do contribuinte indica que objeto da ação foi integralmente acolhido
Uma grande rede varejista de farmácias de atuação em âmbito nacional ingressou com medida judicial via da qual pretendia ver reconhecido o direito de se creditar extemporaneamente do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) indevidamente recolhido nos últimos dez anos, referente à inclusão de despesas com financiamento e encargos financeiros na base de cálculo do ICMS, bem como que lhe fosse autorizado o creditamento de tais valores no livro de apuração do ICMS, com atualização monetária.
Contra a decisão de primeiro grau que julgou improcedente a inicial, o contribuinte manejou recurso de apelação, que foi provido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em acórdão cujo voto condutor se limitou a fazer referência à aplicação da Súmula 237 do STJ, assim enunciada: “Os encargos relativos ao financiamento do preço, nas compras feitas através de cartão de crédito, não devem ser considerados, no cálculo do ICMS”.
Essa decisão da Corte bandeirante não foi objeto de embargos de declaração e os Recursos Especial e Extraordinário aviados pela Procuradoria-Geral do Estado não foram admitidos, tendo transitado em julgado.
O fisco, sob o entendimento de que a referida decisão judicial se restringiu a reconhecer apenas a exclusão dos encargos de financiamento da base de cálculo do imposto, mas não as taxas cobradas pelas administradoras de cartão de crédito e de débito, procedeu à lavratura de vários autos de infração na maior parte dos estabelecimentos do contribuinte localizados no estado de São Paulo, sob a acusação de creditamento indevido de ICMS decorrente da escrituração no Livro Registro de Entradas e respectiva transposição para as Guias de Informação e Apuração do ICMS (GIA’s).
Quantidade expressiva dos autos de infração então lavrados não se submeteu a julgamento perante o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT) por não alcançar o limite de alçada de 20.000 Ufesp’s de que tratam os artigos 46 e 47 da Lei 13.457, de 2009 (na redação da Lei 16.498, de 2017), submetendo-se ao duplo grau de jurisdição perante a própria Delegacia Tributária de Julgamento, que é o mesmo órgão encarregado de proferir a decisão de primeira instância.
Em relação aos casos julgados sobre essa temática pelo TIT no período de 1º de janeiro de 2020 a 20 de maio de 2022, foram encontrados 11 acórdãos proferidos pelas Câmaras Julgadoras e 38 acórdãos exarados pela Câmara Superior. Dos 11 julgamentos realizados nas Câmaras Julgadoras, 10 tiveram desfecho contrário ao contribuinte e apenas um lhe foi favorável (decisão ainda não transitada em julgado). Já na Câmara Superior, foi julgado e provido um Recurso Especial da Fazenda Pública, não conhecidos 23 Recursos Especiais do Contribuinte e conhecidos ou conhecidos parcialmente, mas não providos na parte conhecida, 14 Recursos Especiais do Contribuinte.
A tese em discussão nos processos administrativos tributários tem dois aspectos centrais defendidos pelo contribuinte:
considerando que o TJSP deu provimento ao recurso de apelação, no qual havia pedido relativo à exclusão das despesas com financiamento e dos encargos financeiros cobrados pelas administradoras de cartões de crédito na base de cálculo do ICMS, a decisão judicial transitada em julgado abrangeria as duas situações, a despeito do voto condutor ter feito apenas menção à Súmula STJ nº 237 (que se refere apenas aos encargos financeiros);
o direito de não incluir esses valores na base de cálculo decorre da legislação vigente, o que autorizaria a apropriação do crédito extemporâneo independentemente da decisão judicial em questão.
No que concerne ao mérito da exigência (item 2 acima), pretensão idêntica já foi afastada pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo 820.525.
Mais recentemente, o Pretório Excelso encerrou definitivamente a questão ao, mutatis mutandis, negar provimento ao Recurso Extraordinário 1049811, com repercussão geral reconhecida, tendo fixado a seguinte tese (tema 1024):“É constitucional a inclusão dos valores retidos pelas administradoras de cartões na base de cálculo das contribuições ao Programas de Integração Social (PIS) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) devidas por empresa que recebe pagamentos por meio de cartões de crédito e débito”.
A respeito dos efeitos da decisão judicial transitada em julgado (item 1 acima), apesar de o posicionamento geral do TIT ser amplamente favorável à Fazenda Estadual, os fundamentos apresentados pelos julgadores variaram bastante, passando pela análise da extensão da coisa julgada no processo judicial (se de fato compreende a exclusão das taxas de serviço cobradas pelas administradoras), indo até a admissão de que a decisão judicial foi abrangente, mas sem que o contribuinte tenha provado a existência do crédito.
Sobre tais aspectos, o acórdão proferido pela 1ª Câmara Julgadora no processo 4.107.261, sob a relatoria do juiz João Maluf Junior, representa significativo exemplo quanto a alguns desses fundamentos adotados, como se depreende da leitura dos seguintes excertos:
“A recorrente, das fls. 603 em diante, apresenta um cabedal de decisões judiciais, porém deixa de apresentar qualquer elemento de prova da origem de seus créditos, desatendendo os termos da diligência determinada e deixando de efetivamente demonstrar se, de fato, os valores levados à crédito referiam-se à taxas de administração pagas.
Ainda que assim não fosse, ao realizar a leitura do acórdão proferido, em sede de apelação, nos autos do Mandado de Segurança n.º 590.780.5/6, bem como nos autos da Apelação Cível com Revisão n.º 609.607-5/9-00, entendo que as decisões se basearam no quanto estabelecido pela Súmula 237 do STJ, a qual permite que o contribuinte exclua da base de cálculo do ICMS apenas os encargos relativos ao financiamento, conforme segue:
‘Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no cálculo do ICMS’.
Nesse sentido, as taxas de administração das administradoras de cartão de crédito não estão amparadas pela exclusão da Súmula 237, e, assim, também não estão amparadas pelas decisões judiciais que na referida súmula se basearam”.
Como retrato do posicionamento da Câmera Superior no que toca à interpretação da decisão judicial transitada em julgado, tome-se o acordão proferido no Recurso Especial nº 4.107.111, leading case adotado como fundamento de vários outros julgamentos posteriores realizados no período pesquisado, de cujo voto condutor de lavra do juiz Valério Pimenta de Morais se extrai o seguinte trecho:
“Tomo que, ainda que na sua petição inicial conste pedido relacionado com ‘encargos relativos a financiamento’ e ‘taxa de administração de cartão de crédito/débito’, é estreme de dúvidas que o seu correspondente trânsito em julgado contemplou como fundamentação a incidência do enunciado de Súmula nº 237 do E. Superior Tribunal de Justiça (‘Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no cálculo do ICMS’). Vê- se bem que o referido enunciado de súmula cuida exclusivamente de ‘encargos relativos ao financiamento’, relacionados, exclusivamente, com as ‘operações com cartão de crédito”.
A análise desses casos aponta para a importância da adequada redação do pedido nas peças judiciais, afim de se evitar ambiguidade interpretativa, e do oportuno manejo de embargos de declaração quando a decisão judicial não for suficientemente clara (o que não significa dizer que, nos processos aqui examinados, o desfecho seria diferente).
Já no bojo do processo administrativo tributário, tendo em vista a quantidade de Recursos Especiais do contribuinte não conhecidos ou conhecidos apenas parcialmente pela não comprovação de divergência, a correta indicação de paradigmas surge como outro aspecto que se sobressai.
Por fim, a necessidade da completa demonstração da existência do direito creditório foi ressaltada em vários julgamentos, cuja ausência acabou sendo abordada como razão complementar para o desfecho contrário aos interesses do contribuinte, indicando a relevância da devida instrução probatória no processo administrativo tributário.
Fonte : JOTA.
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