Em 2021 o STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.858, reconheceu a constitucionalidade da redução a 4% do ICMS incidente em operações interestaduais de produtos importados, alíquota definida pela Resolução 13/2012 do Senado.
Além da conclusão de que o ato do Senado respeitou a competência outorgada pelo artigo 155, §2º, IV, da CF, a Corte Suprema concluiu que a matéria não exige disciplina por lei complementar.
Em que pese a definição geral firmada pela decisão, a Suprema Corte não adentrou em situação especial que merece tratamento distinto de incidência, qual seja: a inaplicabilidade da Resolução 13/2012 do Senado alcançar produtos importados de países em que o Brasil tenha firmado tratado internacional com cláusula de obrigação de tratamento nacional.
Essa é a proposta do presente estudo.
ICMS em operações interestaduais e a guerra fiscal
A chamada "guerra fiscal" no Brasil precede o ICMS.
Ainda sob a égide do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), a guerra fiscal era intensa. Por ser um imposto estadual, cumulativo e cobrado na origem, os estados mais ricos conseguiam reduzir suas alíquotas a taxas mínimas, de modo a atrair os polos industriais e incentivar a verticalização da cadeia produtiva em sua região.
Com a reforma tributária promovida pela EC 18/1965, o IVC foi extinto e, em seu lugar, foi instituído o então Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM). Entre as novidades estava seu caráter não cumulativo e a possibilidade de o Senado Federal definir suas alíquotas máximas.
Mesmo após a implementação do ICM a guerra fiscal permaneceu. Diante das reivindicações dos chamados "estados consumidores" (Norte e Nordeste), a partir de 1968 as alíquotas do ICM foram modificadas, de modo que as alíquotas interestaduais passaram a ser inferiores às alíquotas internas.
Como a alíquota interestadual menor influencia na guerra fiscal? Diante da não cumulatividade do imposto, com a alíquota interestadual menor, menor será o crédito à empresa destinatária da mercadoria.
Consequentemente, ao empresário se mostra economicamente atrativo adquirir a mercadoria no próprio estado (e obter mais crédito do imposto) do que comprar a mercadoria de outro estado.
A partir da década de 1980 o Centro-Oeste e o Espírito Santo foram incluídos como estados menos favorecidos. Após a Constituição de 1989 e a transformação do ICM em ICMS, foi promulgada a Resolução 22/1989 do Senado, que estabelece alíquotas de 12% nas operações interestaduais e 7% nas operações interestaduais das Regiões Sul e Sudeste destinadas às Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e ao Espírito Santo.
Como último ato desse capítulo, no início da década de 2010 a guerra fiscal ganhou nova versão, com a chamada "guerra dos portos". Diante da propagação de benefícios fiscais de ICMS voltados às operações importação, com a intenção de atrair as empresas importadoras para o respectivo estado importador, foi publicada a Resolução 13/2012 do Senado, reduzindo para 4% as alíquotas interestaduais de mercadorias estrangeiras, independentemente da região de destino.
Eternamente importado
Até quando as operações interestaduais com a mercadoria estrangeira terão alíquotas reduzidas de 4%? Segundo o Convênio S/Nº, de 15 de dezembro de 1970 eternamente.
O Sistema Nacional Integrado de Informações Econômico-Fiscais (Sinief), criado Convênio S/Nº, de 15 de dezembro de 1970, fixa regras sobre as obrigações acessórias do ICMS, a exemplo do Código de Situação Tributária (CST), de uso obrigatório na nota fiscal.
Em relação ao CST, este é formado por três dígitos (ABB), sendo que o primeiro indica a origem da mercadoria:
1 - Estrangeira - Importação direta, exceto a indicada no código 6;
2 - Estrangeira - Adquirida no mercado interno, exceto a indicada no código 7;
6 - Estrangeira - Importação direta, sem similar nacional, constante em lista de Resolução CAMEX e gás natural;
7 - Estrangeira - Adquirida no mercado interno, sem similar nacional, constante em lista de Resolução CAMEX e gás natural.
Portanto, o produto importado, mesmo quando adquirido no mercado interno, carregará consigo o código CST "2" (estrangeira adquirida no mercado interno). Consequentemente, mesmo que se adquira no mercado interno produto importado, a revenda interestadual dessa mercadoria estará sujeita à tratamento tributário diverso dos produtos nacionais, com alíquota de ICMS interestadual de 4%.
Violação à cláusula de tratamento nacional
Ao mirar na "guerra dos portos", a Resolução 13/2012 do Senado Federal acabou por violar o artigo 7º do Decreto n. 350/1991 (Tratado do Mercosul).
O Tratado para a Constituição de um Mercado Comum entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai (Tratado Mercosul), internalizado ao sistema positivo de direito nacional por meio do Decreto n. 350/1991, determina expressamente em seu artigo 7 a obrigação de se conceder às mercadorias originárias dos países integrantes do Mercosul o mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional:
"Artigo 7: Em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional."
A cláusula de tratamento nacional supra prevalece sobre as normas tributárias de direito interno, a teor do expresso comando do artigo 98 do CTN:
"Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha."
Voltando-se à Resolução 13/2012 do Senado, nela não encontramos qualquer ressalva às mercadorias oriundas do Mercosul. As exceções previstas na resolução são aplicáveis às mercadorias estrangeiras: (1) submetidas à industrialização e com conteúdo de importação inferior a 40%; (2) sem similar nacional; (3) em conformidade com os processos produtivos básicos; e (4) gás natural importado do exterior a outros Estados.
Poder-se-ia concluir que a alíquota interestadual de 4% é inferior às alíquotas de 7% e 12% praticadas às mercadorias nacionais e que, portanto, o tratamento desigual favoreceria as mercadorias do Mercosul.
Ocorre que, como já apresentamos acima, o exame de incidência do ICMS não pode ocorrer dissociado da análise da regra de creditamento desse imposto.
A alíquota interestadual de 4% penaliza o comerciante nacional e majora a carga tributária sobre o produto Mercosul em comparação com mercadorias nacionais em igual situação, pois, na aquisição do produto Mercosul, o adquirente gozará de crédito inferior aos produtos nacionais em idêntica situação.
Por todo o exposto, apesar de a incidência de alíquotas reduzidas de ICMS em operações interestaduais representar instrumento de combate à chamada "guerra fiscal", as armas utilizadas contra essa guerra devem respeitar princípios e regras do sistema de direito positivo, entre os quais a cláusula de tratamento nacional prevista no artigo 7º, do Decreto nº 350/1991, amparada pelo artigo 98 do CTN e artigo 5º, §2º, da CF.
A análise da ADI 4.858 pelo STF não se estendeu sobre casos específicos abarcados por tratados internacionais, a exemplo das mercadorias oriundas do Mercosul, motivo pelo qual estão sujeitas a distinguishing em relação às conclusões da ADI 4.858.
Uma análise parcial da cadeia de circulação pode levar a entender que a redução da alíquota interestadual de ICMS sobre mercadorias oriundas do Mercosul representa um benefício ao produto, já que reduz o imposto nesta etapa da operação. Contudo, o exame detalhado sobre a cadeia circulatória e exame dos créditos derivados da não cumulatividade revela que a redução de alíquota majora a carga tributária de mercadorias oriundas do Mercosul acima da tributação aplicada às mercadorias nacionais em situação idêntica.
Desse modo, para que se cumpra a cláusula de tratamento nacional, as mercadorias importadas de países signatários do Mercosul devem se sujeitar às alíquotas interestaduais de 7% a 12% da Resolução 22/1989 do Senado, praticadas a todas as mercadorias nacionais em idêntica situação, posição que harmoniza o combate à "guerra fiscal" com o comando do artigo 7º do Decreto nº 350/1991 (Tratado do Mercosul), artigo 98 do CTN e artigo 5º, §2º, da CF.
Fonte : Conjur.
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